Estudo retrospectivo da ocorrência de infecção urinária em gatos com doença renal crônica (DRC)


Por Marcela Malvini em 11/10/2015 | Medicina de Felinos | Comentários: 0

Archivaldo Reche Junior; Mariana Ferreira; Juliana Toledo Duarte; Renata Camozzi; Cláudia R.B.Stricagnolo

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 Introdução

 

Dentre as uropatias descritas na espécie felina, as infecções urinárias são reconhecidamente raras. Entretanto, sua prevalência é variável de acordo com os aspectos etiológicos associados. Podem ser inferiores a três por cento em gatos com manifestações clínicas de doenças do trato urinário inferior (DTUI) e alcançar 43% ou mais, de forma iatrogênica à sondagem e a uretrostomia perineal, sendo também correlacionada a outras manifestações ou complicações do trato urinário, tais como defeitos anatômicos, neoplasia, urolitíase, cistite intersticial e distúrbios comportamentais. 

 

Os gatos possuem propriedades urinárias peculiares, responsáveis por conferir  maior resistência às infecções quando comparados a outras espécies. A urina de gatos normais é naturalmente concentrada. Com frequência, a densidade urinária excede 1,040, podendo chegar a 1,080. Além disso, elevadas concentrações de ureia e de ácidos orgânicos em associação à secreção de peptídeos antimicrobianos e aos mecanismos de defesa imunológicos são responsáveis por inibir a colonização e o crescimento bacteriano.

 

As infecções bacterianas em gatos podem ou não ter apresentação clinica aparente. A manifestação dos sintomas associada à infecção geralmente decorre de lesão e ou inflamação tecidual. Todavia, este pode ser um contexto comum a outras causas não infecciosas. Independente da manifestação dos sintomas, consequências como a urolitíase, prostatite, pielonefrite, sepse, doença renal crônica (DRC) e falência renal são passíveis de serem evitadas ao se obter o diagnóstico precoce.

 

É possível que a DRC também represente uma causa de cistite bacteriana em gatos. Durante a evolução dos estágios da DRC os mecanismos intrínsecos de defesa do trato urinário são perdidos, tornando os animais mais susceptíveis às infecções. Contudo, o diagnóstico presuntivo de cistite bacteriana deve ser evitado, mesmo nesse grupo de pacientes. É imprescindível antes de instituir qualquer terapia, a confirmação da suspeita clínica por meio da cultura bacteriana urinária e do antibiograma, sempre que possível em associação ao exame ultrassonográfico.

 

Objetivos

 

Com o objetivo de avaliar a prevalência de cistite bacteriana em gatos com doença renal crônica (DRC) e de prover informações acerca deste assunto, procedeu-se o estudo retrospectivo sobre a ocorrência de infecção urinária em gatos com DRC atendidos no Hospital Veterinário da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo - FMVZ/USP, no período compreendido entre fevereiro de 2011 e fevereiro de 2012.

 

Método

 

Foram incluídos no estudo gatos com DRC atendidos no Hospital Veterinário da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo - FMVZ/USP,  no período entre fevereiro de 2011 e fevereiro de 2012. Como critério de inclusão utilizou-se animais diagnosticados com DRC, segundo os critérios designados pela IRIS - International Renal Interest Society, submetidos no mesmo momento ao exame de urina e cultura urinária, com amostras procedentes de cistocentese. Todos os gatos foram avaliados ultrassonograficamente e nenhum deles apresentou histórico de terapia antimicrobiana nos últimos três meses. 

 

Compilou-se os dados relativos à faixa etária no momento do diagnóstico, definição racial, presença de alterações renais e ureterais concomitantes. As variáveis estudadas foram agrupadas e analisadas de acordo com os princípios de estatística descritiva. 

 

Resultados e discussão

 

Um total de 43 gatos foi incluído no estudo. Os gatos sem raça definida foram os mais representativos 20/43 (46,51%). Seis dos 43 pacientes eram persas (13,95%); quatro, siameses (9,3%);  um, Norueguês da Floresta (2,32%) e um, Exótico (2,32%). De acordo com as informações inferidas sobre a faixa etária, a média encontrada foi de 7,5 anos; com uma proporção de fêmeas superior à de machos, i.e. 58,13% (25/43) e 41,86%  (18/43) respectivamente.


Houve predominância de animais classificados no estágio dois da DRC, e de forma decrescente nos estágios três e quatro, representados por 67,44% (29/43), 23,25%% (10/43) e 9% (4/43) da população estudada. Nenhum paciente pertenceu ao estágio um da DRC.

 

O diagnóstico de infecção urinária requer investigação apurada. A característica da bacteriúria que permite a avaliação do seu significado é a contagem de microorganismos presentes na amostra. Assim, é necessário que um grande número de microorganismos (10.000 a 100.000 bactérias/ mL) esteja disponível para crescimento e multiplicação nas amostras in vivo, sendo comum a detecção de um pequeno número de bactérias em amostras de animais saudáveis, devido à possibilidade de contaminação, durante ou após a coleta.

 

Seguindo estes critérios, somente três dos nossos pacientes (6,97%) apresentaram infecção do trato urinário (ITU), com consequente crescimento bacteriano no cultivo microbiológico da urina (Tabela 1), ambos associados à infecção por Escherichia coli. Este uropatógeno é o mais frequentemente associado às cistites bacterianas em felinos, principalmente em gatos idosos, com mais de 10 anos e declínio da função renal. É possível o desenvolvimento de ITU entre aproximadamente 1/4 a 2/3 desses pacientes.

 

Um estudo prospectivo conduzido pela Universidade de Davis - Califórnia demonstrou que 58/344 (16,9%) gatos portadores de DRC, desenvolveram ITU, contrapondo os valores relativos à nossa porcentagem 3/43 (6,97%). Essa diferença pode ser atribuída, pelo menos em parte, às particularidades inerentes à região geográfica e ao critério indicativo de infecção utilizado.

 

Ademais, em 34,88% das nossas amostras urinárias (15/43) foi identificado bacteriúria, de uma a três cruzes, ao exame microscópico direto. No entanto, a ocorrência de bacteriúria não é sinônimo de infecção, podendo refletir apenas contaminação da amostra.

 

É sempre importante pesquisar e identificar a causa de base das infecções urinárias. Dados não publicados de um estudo realizado pelo Departamento de Clínica Médica da FMVZ/USP demonstraram que houve crescimento bacteriano em 13 de 53 amostras urinárias de gatos submetidas à cultura urinária. Entretanto, 100% desses animais apresentaram histórico de sondagem uretral, corroborando a resultados de outros pesquisadores em que a doença se desenvolve de forma iatrogênica.

 

No presente estudo, outras comorbidades e ou antecedentes, tais como a presença de neoplasia ureteral e tratamento cirúrgico prévio foram encontradas nos pacientes com ITU (Tabela 01). 

 

Tabela 1: Perfil dos gatos com DRC e cistite bacteriana associada

 

 

Gato 1

Gato 2

Gato 3

Raça

Siâmes

Norueguês da Floresta

Maine Coon

Sexo

Fêmea

Macho

Fêmea

Idade

13 anos

01 ano

06 anos

Uréia

52,7 mg/dL

65,9 mg/dL

70,4 mg/dL

Creatinina

1,8 mg/dL

1,6 mg/dL

2 mg/dL

Estágio da DRC

2

2

2

pH Urinário

7

6

6

Densidade Urinária

1,025

1,040

1,025

Bacteriúria

+++

+++

+++

Cristalúria

N

N

CaOx+

Urocultura

E.Coli > 100 mil UFC/ mL

E.Coli > 100 mil UFC/ mL

E.Coli > 100 mil UFC/ mL

Antecedentes

Neoplasia Ureteral

Nefrectomia

Ureterolitotomia

Sintomas

Anorexia há 2 meses

NDN

NDN

 

 

Não houve alterações significativas no exame ultrassonográfico de nenhum dos animais estudados, além dos achados morfológicos pertinentes à perda de função renal. Porém, a presença de cálculos renais e ou ureterais concomitantes foi uma ocorrência comum, observada em mais da metade dos pacientes 23/43 (53,48%). A presença de calcificação de divertículo renal também foi observada em outros seis gatos (13,95%). Estes resultados são concordantes a dados inferidos por outros pesquisadores no qual há uma forte correlação entre a ocorrência de DRC e a presença de cálculos de origem renal.


Sabe-se que, atualmente, a composição mineral preponderante de nefrólitos e ureterólitos em felinos é de oxalato de cálcio (CaOx)22-24 e que raramente há manifestação de cristalúria25. Curiosamente, somente seis dos 23 animais portadores de litíase renal deste estudo apresentaram cristais na urina, cuja composição predominante foi de CaOx (4/23) e em seguida de fosfato triplo (2/23). 


A ocorrência de urólitos constitui um dos fatores predisponentes para o desenvolvimento de ITU. Resultados provenientes de um estudo em gatos portadores de cistite e urolitíase demonstraram uma baixa prevalência de infecção urinária na população estudada. Somente uma das 48 amostras submetidas à urocultura apresentou crescimento bacteriano significativo.

 

Eggerstsdóttir et al (2007) analisaram 134 gatos com doença do trato urinário inferior obstrutiva e não obstrutiva onde 33 dos pacientes (25%) apresentaram crescimento bacteriano superior a 104UFC/mL de forma isolada ou em associação à cristalúria e ou urolitíase10. Dados similares foram obtidos no estudo de Dorn Richard et al (1973) em que 27,7% das amostras (6/22) foram positivas11. Em nossa casuística, os três gatos com cistite bacteriana eram portadores de litíase renal e ou ureteral.

 

Conclusão

 

Os dados extraídos deste estudo apontam que a cistite bacteriana permanece como uma doença ocasional em gatos, mesmo naqueles com DRC e perda dos mecanismos intrínsecos de defesa. Não raramente, muitos pacientes são submetidos à terapia antimicrobiana antes da confirmação de infecção por meio da cultura bacteriana urinária e do antibiograma.

 

A comprovação de infecção urinária é importante, uma vez que permite a intervenção precoce e possibilita o direcionamento terapêutico, de forma específica e efetiva a um dado patógeno, evitando assim o desenvolvimento de resistência bacteriana pelo paciente e a ocorrência de gastos desnecessários aos proprietários.

  

Trabalho apresentado no Congresso Paulista das Especialidades - Conpavepa/Conpavet (2012)

 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião da treevet


Sobre o autor

Marcela Malvini

Médica Veterinária graduada pela PUC-MG em julho de 2009. Dedicou todo o período de sua graduação à Medicina de Felinos, realizando estágios em clínicas voltadas para a especialidade, como a Clínica Veterinária Gatos & Gatos no Rio de Janeiro e a Clínica Veterinária Vetmasters em São Paulo. Entre outros estágios de maior relevância destacou-se, também, o realizado em Madrid/Espanha cuja ênfase foi em Medicina de Urgências e Cuidados Intensivos. Realizou Pós Graduação Lato Sensu em Gestão Estratégica de Empresas, foi monitora e coordenadora de cursos de Pós Graduação em Clínica de Felinos. É mestre e doutora pelo departamento de Clínica Médica da FMVZ/USP sob orientação do Prof. Archivaldo Reche Júnior, foi professora da disciplina Tópicos especiais em clínica de felinos na Pontifício Universidade Católica de Minas Gerais - Betim/MG e é autora de capítulos de livro de Medicina Felina, Urgência e Emergência. Coordenadora Científica da Tree Vet & CAT - Consultoria, Atendimento e Treinamento em Medicina Felina.


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