Anorexia em Felinos – Como identificar e tratar


Por Marcela Malvini em 05/10/2015 | Medicina de Felinos | Comentários: 0

Archivaldo Reche Jr

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Marcela Malvini Pimenta

Archivaldo Reche Jr

A anorexia constitui a perda de apetite por alimentos, representando muitas vezes o único sintoma de uma enfermidade. Seu desenvolvimento está intimamente relacionado a inúmeras condições patológicas e não patológicas como as neoplasias; distúrbios metabólicos, urinários, endócrinos e gastroentéricos; síndromes neurológicas; doenças infecciosas e inflamatórias; distúrbios orofaríngeos e cardiopulmonares; reações a medicamentos ou toxinas; febre; dor; estresse e seletividade aos alimentos. 

A ausência de apetite em felinos por mais de três dias ou a hiporexia persistente e prolongada podem resultar no desenvolvimento de complicações metabólicas, responsáveis por potencializar o problema pré-existente. Assim, é necessária a identificação da doença de base e sua intervenção terapêutica imediata.

Durante a anamnese é importante obter informações acerca de alterações realizadas no ambiente onde o gato reside, introdução de outro animal na propriedade, chegada de um novo membro na família ou de um novo funcionário, histórico de viagens recentes (do paciente e ou proprietário), realização de terapias medicamentosas, mudanças alimentares, composição nutricional do alimento oferecido, histórico de imunização, acesso a toxinas, plantas tóxicas ou objetos que possam ser ingeridos inadvertidamente, principalmente fios, linhas, elástico e barbante. Também é salutar a investigação de outras manifestações clínicas para a obtenção do diagnóstico primário, tais como poliúria, polidpsia, vômito, diarréia, sialorréia, tremores, ataxia, dispnéia, problemas de reprodução ou no desenvolvimento de filhotes e até mesmo alterações oftálmicas e dermatológicas. 

O exame físico deve ser realizado cuidadosamente e de forma criteriosa, desde a face até a cauda. A avaliação completa da cavidade oral é necessária para detecção de alterações odontológicas (dental ou gengival), presença de úlceras e corpos estranhos lineares, comumente alojados na base da língua. Doenças cárdio pulmonares podem resultar em ausculta alterada. Por meio da palpação abdominal é possível identificar alterações de sensibilidade, além de permitir a avaliação e o dimensionamento dos órgãos e vísceras abdominais (tamanho, forma, consistência, neoformações). É necessária a inspeção de toda a pele e pelos. Não são incomuns as feridas por mordedura ou outras lesões permanecerem encobertas por pelos e não serem evidenciadas. Em alguns casos o exame de fundo de olho poderá prover informações sugestivas de doenças infecciosas e inflamatórias ou neoplasia de origem linfóide.

Diferentemente do que ocorre nos cães, a anorexia constitui fator crucial para o desenvolvimento da lipidose hepática (LH) nos gatos, particularmente naqueles com histórico de obesidade. Seu alto índice de morbidade e mortalidade é justificado pelo agravamento do quadro primário, como também pelo desenvolvimento de hepatite aguda, colestase intra hepática grave e insuficiência hepática progressiva. 

Assim como os grandes felídeos, os gatos são carnívoros essenciais, ou seja, possuem alto requerimento de proteína como precursor de energia para as células. Por esse motivo, a perda de apetite ou a presença de qualquer doença que altere a digestão e absorção de alimentos, pode desencadear o processo de lipólise e a mobilização de gordura para o fígado, como fonte alternativa de substrato energético. Como resultado das limitações de biotransformação de ácidos graxos da espécie felina, ocorre deposição e acúmulo de triglicerídeos no interior dos hepatócitos, caracterizando, assim, o processo de lipidose hepática.

O diagnóstico de LH é alcançado pela associação dos achados obtidos no histórico, exame físico, alterações laboratoriais e ultrassonográficas. A fosfatase alcalina está, com freqüência, muito aumentada, mas surpreendentemente a GGT pode estar normal ou apenas um pouco elevada. A ALT e AST estão quase sempre elevadas, mas não na magnitude da FA. No entanto, para o diagnóstico definitivo pode ser necessário a realização do exame citológico do tecido hepático, em que é evidenciando a vacuolização gordurosa em mais de oitenta por cento dos hepatócitos. 

É importante lembrar que a anorexia não é uma doença, mas, uma manifestação clínica de uma enfermidade. De forma semelhante, a lipidose hepática é um processo secundário a uma doença subjacente em até 95% dos casos. Por esse motivo a identificação da causa primária é imperativa tanto para o diagnóstico quanto para o planejamento terapêutico. 

Neste contexto, é necessário investigar o envolvimento de alterações nutricionais, a  ocorrência de hepatopatias, endocrinopatias, doenças gastroentéricas e outras doenças de origem urinária, respiratória, infecciosa, inflamatória e tumoral, além da ocorrência de intoxicação, dor e estresse de diversas origens.

O tratamento da doença subjacente é essencial para que a anorexia e a lipidose hepática sejam revertidas. A abordagem nutricional precoce do paciente é necessária para reverter o estado de catabolismo para anabolismo. Contudo esta transição deve ocorrer de forma gradual, de forma que o requerimento energético basal (REB) seja alcançado em três dias, evitando-se assim a ocorrência da síndrome da realimentação. Por meio da equação REB= (30 x peso (Kg)) + 70 é possível obter o teor energético necessário e prover a alimentação adequada.

As necessidades nutricionais dos felinos devem ser sempre lembradas. Alguns nutrientes são perdidos de forma constante enquanto outros possuem síntese inadequada. O suporte enteral é o mais preconizado, por manter a viabilidade das microvilosidades intestinais e a integridade funcional do intestino, evitando-se a ocorrência da translocação bacteriana.

A alimentação por meio de tubo esôfago-gástrico é o método de eleição por constituir um meio natural de absorção e utilização dos nutrientes e por prover o volume adequado de dieta ao paciente, idealmente realizada com um intervalo mínimo de três a quatro horas. A alimentação forçada não é uma forma de nutrição satisfatória na maioria das vezes, por aumentar significativamente o estresse do paciente e não atender o requerimento energético mínimo.

Outras opções, em casos específicos, são as vias nasoesofágica, gástrica ou jejunal, mas também possuem limitações. O uso orexígeno tais como a ciproeptadina é indicado somente em processos inferiores a três dias e requer resposta imediata (no máximo 24horas). Caso contrário, deve ser suspenso e substituído pelo suporte nutricional enteral.

Os fármacos benzodiazepínicos são totalmente contra indicados. Se o trato gastroentérico não é capaz de digerir e absorver o alimento, uma alternativa é a nutrição parenteral parcial ou total.

A recuperação do paciente depende ainda da correção de anormalidades hídricas e eletrolíticas e de outras complicações como, por exemplo, os distúrbios de coagulação e infecções oportunistas. O controle da náusea e do vômito também é fundamental.

É importante ressaltar que não se deve utilizar solução glicosada durante a fluidoterapia destes pacientes. A glicose é armazenada predominantemente na forma de gordura no fígado, potencializando o problema, além de proporcionar energia de forma insignificante. Para um tratamento efetivo, o controle de peso diário também é fundamental.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião da treevet


Sobre o autor

Marcela Malvini

Médica Veterinária graduada pela PUC-MG em julho de 2009. Dedicou todo o período de sua graduação à Medicina de Felinos, realizando estágios em clínicas voltadas para a especialidade, como a Clínica Veterinária Gatos & Gatos no Rio de Janeiro e a Clínica Veterinária Vetmasters em São Paulo. Entre outros estágios de maior relevância destacou-se, também, o realizado em Madrid/Espanha cuja ênfase foi em Medicina de Urgências e Cuidados Intensivos. Realizou Pós Graduação Lato Sensu em Gestão Estratégica de Empresas, foi monitora e coordenadora de cursos de Pós Graduação em Clínica de Felinos. É mestre e doutora pelo departamento de Clínica Médica da FMVZ/USP sob orientação do Prof. Archivaldo Reche Júnior, foi professora da disciplina Tópicos especiais em clínica de felinos na Pontifício Universidade Católica de Minas Gerais - Betim/MG e é autora de capítulos de livro de Medicina Felina, Urgência e Emergência. Coordenadora Científica da Tree Vet & CAT - Consultoria, Atendimento e Treinamento em Medicina Felina.


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